Entrevista publicada no Diário de Notícias em 14.02.2022

A Democracia e o Sistema Político: Desafios e Reformas é a terceira conferência do ciclo Sociedade no Século XXI: Desafios Sociais, Geracionais, Políticos e Económicos, organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. A palestra por Paulo Trigo Pereira, professor catedrático de Economia Pública e do Bem-Estar no ISEG e autor do livro “Democracia em Portugal: como Evitar o Seu Declínio?”, pode ser vista nesta segunda-feira às 18 horas por Zoom.

Paulo Trigo Pereira, professor catedrático do ISEG.
© Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Governabilidade versus representatividade. Na sua opinião, que sistema eleitoral serve melhor a democracia, o que privilegia a primeira dimensão ou aquele que favorece a segunda?

Todos os sistemas eleitorais proporcionais, como o nosso, quando comparados com os maioritários (Reino Unido, Franca, etc.), dão maior importância à representatividade do que à governabilidade. Porém, não é apenas o sistema eleitoral, mas também a cultura política do país que determina o grau de conflito entre ambos. Em muitos países europeus com sistema proporcional consegue conciliar-se governabilidade com representatividade pois existe uma cultura de compromisso e se não há um partido maioritário, forma-se uma coligação maioritária para governar. Em Portugal esta cultura não existe (ainda) o que é pena pois é possível conciliar representatividade com governabilidade.

No caso específico de Portugal, apesar de o sistema eleitoral ter sido pensado para favorecer a representatividade, já por quatro vezes permitiu maiorias absolutas de um só partido, e tanto à esquerda como à direita. Justificam-se mudanças?

Estou convencido de que a probabilidade de existirem maiorias absolutas no futuro será cada vez menor e que a fragmentação parlamentar vai aumentar em Portugal. As razões pelas quais se justificam mudanças são outras. O sistema eleitoral é injusto pois, por exemplo, os eleitores de Portalegre (com dois mandatos) têm um menu real de partidos em que o seu voto não é “desperdiçado”, muitíssimo menor do que um eleitor de Lisboa. O boletim de voto é fechado, no sentido de se votar apenas em partidos, não havendo nenhuma possibilidade de se votar em candidatos como sucede na esmagadora maioria dos países. Redesenhar os círculos e permitir voto em partidos, mas também em candidatos, como acontece no sistema eleitoral alemão e na maioria dos sistemas eleitorais europeus, permitiria aproximar eleitores de eleitos e provavelmente melhorar a qualidade dos nossos representantes.

Há uma crítica permanente na sociedade em relação aos partidos, como se fossem algo negativo. Mas é possível imaginar uma democracia sem partidos? Ou o que há a fazer é mudar o modo como funcionam os partidos?

Os partidos desempenham funções cruciais em democracia, e não é possível pensar um regime democrático estável sem partidos. Definem plataformas políticas diversas que apresentam aos cidadãos em campanhas eleitorais e realizam, melhor ou pior, um escrutínio dos cidadãos que ocupam lugares políticos e na administração. O problema é que os partidos não se qualificam internamente ao nível dos quadros e das juventudes partidárias e têm por vezes práticas muito criticáveis (sindicatos de voto, uma deputada que acede ao computador de outro deputado no plenário, etc.). Não cumprem uma das suas funções e não têm associados a si grupos de estudo ou think tanks que produzam propostas realistas e exequíveis para o país. É necessário mudar a forma de os partidos funcionarem e isso só se consegue mudando o modelo de financiamento partidário e, curiosamente, o sistema eleitoral.

Como deve lidar a democracia com partidos que a contestam, seja à direita ou à esquerda?

Há uma instância que decide se um partido é ou não legal e pode jogar a competição política democrática que é o Tribunal Constitucional. As regras do jogo democrático nacional são definidas desde logo na Constituição e a seguir no Regimento da Assembleia da República. Agora regras são regras e tradições são tradições. Nunca aceitei, enquanto deputado, a “tradição” como justificação para procedimentos parlamentares. Os partidos democráticos e os deputados que partilham os valores-base da democracia não devem ser complacentes, nem aliar-se ou facilitar a vida àqueles que não os partilham. Por outro lado, devem levar esses partidos radicais a ir a jogo e mostrarem as propostas que têm para o país e a capacidade dos seus deputados de argumentarem em sua defesa. Aí se verá que o rei vai nu.

Existe um limiar (percentagem) a partir do qual podemos considerar a abstenção um sinal de falência do sistema democrático?

A taxa de abstenção está algo sobrevalorizada devido a os cadernos eleitorais não estarem atualizados. De qualquer modo os níveis de abstenção em Portugal têm sido tendencialmente crescentes, apesar da diminuição nesta última eleição. São motivo de preocupação. Há países que têm o voto obrigatório, o que não me parece uma boa solução. O que há a fazer é atualizar os cadernos eleitorais, facilitar o voto por parte dos cidadãos, reafirmar a importância do ato de votar e finalmente dignificar a atividade partidária e política em geral, não só para atrair mais e melhores cidadãos para a coisa publica, como para diminuir a abstenção.

A remuneração dos políticos no sentido de procurar o máximo de qualidade deveria deixar de ser um tabu?

O aumento da remuneração dos políticos não deveria vir dissociado do seu desempenho e dedicação. Uma coisa é um deputado em dedicação exclusiva no parlamento e outra um deputado que lá vai “picar o ponto”. Considero que o subsídio de exclusividade deveria ser aumentado, e que isso deveria vir acompanhado de transparência em relação ao seu desempenho, na fiscalização do executivo, na apresentação de projetos de lei, na elaboração de relatórios e pareceres. Porém, a qualidade está também a montante, no processo de seleção dos deputados, que hoje é exclusiva dos partidos e dos seus métodos internos de seleção.

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