Não se trata apenas de mais despesa, trata-se de melhor, mais prioritária e mais célere despesa. Nada disto se resolve por si com a demissão de ministros e pode mesmo ser agravado no curto prazo.

1. Foi num mês antes das eleições legislativas de 2011. O João Duque, então Presidente do ISEG tinha-me pedido, e eu aceitado por dever institucional, uma colaboração regular num programa do económico TV gravado às 10 da manhã e reproduzido à noite. Qual não é o meu espanto quando, à noite, em vez de emitirem o programa, anunciado em rodapé, emitiram uma entrevista a Ângelo Correia em que basicamente discorreu sobre as qualidades de Pedro Passos Coelho.

Nunca mais lá fui. E sim, Ângelo Correia foi o padrinho de Passos Coelho (embora diga hoje que não), mas aparentemente estará a deixar cair o seu afilhado para apadrinhar outra solução para o PSD, Rui Rio, ao afirmar que o PSD não existe.

A política tem destas coisas, os filhos ou afilhados não são para a vida e há mesmo filhos a matar os pais (veja-se Merkel e Kohl). Os sinais da mudança no PSD são evidentes, sobretudo a Norte (desfiliação de Valente de Oliveira e de militantes que querem apoiar Moreira e movimentações várias), mas também no Sul, com a incursão e vitória de Morais Sarmento em Lisboa, apenas não mais folgada por ter algumas figuras pouco recomendáveis consigo.

Do lado do CDS a agenda também escasseava. Assunção Cristas decide lançar-se na corrida à capital sem projeto consistente, como é ilustrado pela proposta megalómana das novas estações de Metro, que contrastam com a sobriedade e seriedade com que Fernando Medina aborda o mesmo tema.

Durante meses e meses a fio a oposição centrou o ataque político em Mário Centeno. Criou-se uma comissão parlamentar surreal para investigar os SMS entre Domingues e Centeno que terá decerto um Relatório dignificante para a Assembleia da República…

À medida que os dados económicos e orçamentais melhoraram e que a opinião pública ficou saturada do folhetim dos SMS era preciso encontrar novo alvo. A natureza (tudo o indica) encarregou-se de atear um incêndio de consequências dramáticas, ampliadas por graves deficiências do Estado.

Criminosos encarregaram-se de roubar material de guerra de paióis em Tancos. Neste desporto nacional da luta político-partidária caracterizado pelo tiro ao alvo, os alvos a abater são agora a ministra da Administração Interna, o ministro da Defesa (pedidos ontem explicitamente por Assunção Cristas) para mais tarde se chegar ao primeiro-ministro.

Não tendo iniciativa política relevante, PSD e CDS vêem agora, pela mão da natureza e de uns criminosos, uma oportunidade de reganharem uma agenda política. Obviamente que devemos tirar importantes ilações destes acontecimentos, um porque já provocou uma tragédia e outro porque poderá provocar quer em solo nacional quer internacional.

2. O caso de Tancos é mais fácil de analisar. Antes do mais convém referir que o roubo do material de guerra tem acontecido um pouco por esse mundo fora. Uma breve pesquisa online permitiu-me concluir que houve um furto muito semelhante a este em França em 2015 de granadas, detonadores e explosivos.

Também abriram uma rede de arame farpado. Tem havido roubos de material radioativo na Polónia, no Irão e no Iraque. O facto de existirem roubos, de maior ou menor gravidade por todo o mundo, mostra apenas que não se trata de caso isolado, mas não atenua a gravidade do evento.

O que é grave, neste caso, para além das eventuais consequências do material roubado em si, são as condições em que ele se processou. O que sabemos já é que o sistema de videovigilância não estava a funcionar, que havia deficiências na rede de arame circundante dos paióis. Sabendo nós que em inúmeros parques de estacionamento e agências bancárias (privadas ou públicas) existe permanente videovigilância é de ficar estupefacto que essa videovigilância não esteja operacional e que essa rede de arame não tenha sido já reparada.

Aquilo que o caso de Tancos sugere é que no Estado não existe gradação de riscos, e que problemas de manutenção de equipamentos ou de cercas de instalações militares são tratados com a mesma prioridade que manutenções doutra natureza. Na lógica de quando houver recursos e tempo far-se-á.

Existe ainda a suspeita que houve colaboração interna neste evento, algo que será desejavelmente apurado no inquérito em curso, o que remete para eventual corrupção passiva por parte de alguém no interior do estabelecimento. Aquilo que também gostaremos de vir a saber é quais são os procedimentos internos e externos de reporte no que diz respeito à segurança de estabelecimentos e aos furtos.

Talvez seja inspirador saber que a Austrália tem reportes anuais, parcialmente públicos e parcialmente secretos, precisamente sobre “roubo e perda de armas de defesa, munições e explosivos”. Não deixa de ser curioso que nós, cidadãos portugueses, sabemos mais sobre o conteúdo dos roubos de material de defesa (e ataque) na Austrália do que em Portugal.

3. A tragédia dos incêndios é muito mais complexa. É natural que um inquérito leve mais tempo pois envolve muitos mais agentes e organismos públicos, empresas privadas, o contrato de parceria do SIRESP, etc. Há que esclarecer a eficácia da cadeia de comando, o que se passou com as comunicações, porque foi mantida aberta a “estrada da morte”, etc. Nesse sentido um prazo de 90 dias não me parece excessivo.

Mas há duas coisas que são analiticamente semelhantes ao caso de Tancos. Trata-se de um evento de risco potencial elevado (medido pela probabilidade de ocorrência do evento vezes o valor expectável do dano) e que envolve a má manutenção de equipamentos. Todos já percebemos que com um sistema de comunicações a funcionar provavelmente a tragédia poderia ter sido evitada.

As estações móveis servem para substituir as fixas, em caso de inoperacionalidade, pelo que pelo menos uma tem de estar operacional. Não foi o caso, uma estava em reparação e a outra em revisão. A forma mais célere de saber o estado de ambas as estações, e a forma mais clara de atribuir responsabilidades é ser uma única entidade a deter as duas estações móveis. Porém, porventura para satisfazer as duas corporações a PSP detém uma e a GNR outra.

Se assim não fosse, se uma entidade qualquer detivesse as duas, nem seria preciso chegar ao topo da cadeia de comando (seja ele a Proteção Civil ou a Secretaria Geral do MAI) para se saber que ambas estavam não operacionais. A ligação por satélite nas estações móveis (hoje inexistente) é também obviamente relevante, mas não teria solucionado o problema no fatídico fim-de-semana, pois se ambas estavam parqueadas, tanto fazia que tivessem ou não ligação a satélites.

4. Muito se tem falado nestes anos na “reforma do Estado”. Na governação anterior esta expressão era sinónima de cortes transversais na despesa e de consolidação e redução de estruturas. A verdadeira reforma do Estado exige uma mudança cultural dos agentes do Estado que acompanhe, uma mudança de procedimentos, de protocolos processuais orientados para a satisfação das necessidades dos cidadãos, das empresas e do ambiente.

Muito se fez em alguns sectores, em particular na educação e saúde, onde temos hoje muitos indicadores para avaliar o desempenho público nestas áreas. Mas pouco se tem feito para aumentar a accountability em áreas como a defesa, ou os negócios estrangeiros que funcionam, cada um à sua maneira, como Estados dentro do próprio Estado.

Em todas as áreas da governação existem riscos que devem ser melhor identificados, para os quais os protocolos de gestão dos riscos devem ser maiores que em outras áreas e onde a despesa pública tem de ser prioritária. Não se trata apenas de mais despesa, trata-se de melhor, mais prioritária e mais célere despesa.

Nada disto se resolve por si com a demissão de ministros e pode mesmo ser agravado no curto prazo. Após os inquéritos, as responsabilidades técnicas e, porventura, políticas, devem ser apuradas e daí retiradas consequências.

PS: Em oportuna entrevista do DN de ontem, lembra-se que Nuno Magalhães era secretário de Estado da Admnistração Interna em 2003, ano com a maior área ardida de sempre e onde terão morrido 18 pessoas.

 

Publicado originalmente no Observador em 04.07.2017