O futuro das nossas cidades dependerá em grande parte da visão que tivermos para elas, dos princípios que defendermos e da eficácia e coordenação das políticas públicas que adoptarmos para os alcançar

1. A cidade histórica de Veneza tinha cerca de 200.000 habitantes em 1980 e apenas menos de 55.000 em 2016. Lisboa em 1981 tinha 801 mil residentes, e em 2015 estima-se que sejam perto de 500 mil. Lisboa está mais bonita (melhor ficará quando as obras acabarem) e mais vibrante. Mas queremos o centro histórico e as zonas mais nobres de Lisboa como um museu parcialmente deserto de residentes (nacionais ou internacionais) e em grande parte habitado e frequentado apenas por turistas e visitantes ocasionais?

Depois de um profundo processo de suburbanização endógeno das últimas décadas, assistimos agora a dois outros fenómenos simultâneos: o da gentrificação e do parcial despovoamento de residentes de certos bairros da cidade (Bairro Alto, Castelo, Alfama, etc.) e da sua substituição quer por crescente oferta turística de diferente tipo (hotéis, hostels, alojamento local), quer por propriedades adquiridas por residentes não habituais de classes altas.

As mudanças recentes, desencadeadas a um ritmo vertiginoso, são um resultado de processos económicos e tecnológicos que têm a ver com o funcionamento dos mercados globais (voos low cost, plataformas de aluguer tipo AirBnB, etc.), mas são também o resultado de um variado conjunto de políticas públicas nacionais (lei das rendas, licenciamento de atividades económicas, regime de reabilitação integral, benefícios fiscais para não residentes ou residentes não habituais, tributação de património, das rendas, das receitas de alojamento local, etc.).

Estas são decisões políticas que devem assentar numa clarificação dos objetivos das políticas públicas a médio e longo prazo.

Era importante aproveitar a pré-campanha eleitoral das autárquicas de 2017, em que já estamos, para clarificar estratégias para as grandes cidades, que enquadrem as medidas de política aos níveis macro, meso e micro, para que estas não sejam ad hoc e sectoriais, como de momento são, e com efeitos contraditórios nos nossos tecidos urbanos.

2. Aquilo que se está a passar em Lisboa e no Porto tem na sua base razões económicas, mas também culturais. A procura, quer de habitação (compra ou arrendamento) quer de dormidas curtas tem aumentado significativamente. A oferta de habitações só pode aumentar pela diminuição de casas desocupadas, a construção de novas habitações, a requalificação de antigas, ou a colocação de mais casas no mercado de arrendamento.

Como a oferta pouco sobe, os preços dos imóveis aumentam e acabam sendo comprados por residentes e não residentes estrangeiros (um em cada seis imóveis em 2016) com maior poder de compra. No que toca ao mercado de dormidas, tem aumentado muito significativamente a oferta do alojamento local e em parte também de hotéis para responder a uma procura sempre em crescendo.

Com as baixas taxas de juro que se têm vindo a verificar em Portugal e na Europa, o investimento em ativos imóveis tornou-se de novo bastante atrativo. Obviamente, há consequências positivas deste processo. Reabilitação urbana mais acelerada, entrada de capitais no país, aumento das exportações (pelo turismo) e uma revitalização e diversificação da oferta de serviços e de outros bens como os culturais.

Há, porém, aspetos negativos. O despovoamento de certos bairros, com o consequente fecho de atividades económicas ligadas à vida quotidiana (a pequena mercearia, a drogaria, a loja de bairro); a dificuldade de famílias de classe média, e dos jovens, já para não falar de famílias de menores rendimentos, habitarem partes significativas da cidade.

O aumento muito elevado dos preços no imobiliário, pelo sobreaquecimento do mercado. E ainda outros problemas como as condições de habitabilidade em bairros mais turísticos (ruído) ou em prédios com AirBnb (incómodo com turistas).

3. Dirão os mais liberais que isto são os mercados a funcionar livremente e que as mudanças a que assistimos são inevitáveis e as suas consequências também. Há, algumas mudanças nos mercados incontornáveis. Por exemplo, a economia digital e o aumento dos serviços online são inevitáveis, já mudam os nossos comportamentos e ainda mais mudarão no futuro. Mas os mercados da habitação e do alojamento não são nem podem ser “mercados livres”.

Todos os mercados são construídos por instituições e estes em particular são segmentados, conforme a idade do imóvel e o tipo de proprietário, são regulados e existem incentivos públicos para quem neles opera. O funcionamento dos mercados é, assim, afectado por decisões políticas, não neutras, da esfera do legislativo e dos executivos (da república, e do município) e por decisões judiciais. Ainda neste Orçamento de Estado 2017 o legislativo aprovou várias medidas.

O aumento da tributação do alojamento local fez, e bem, uma diminuição do diferencial em relação à tributação das rendas, reduzindo a distorção, que ainda é relativamente favorável ao mercado de alojamento local. O adicional ao IMI fez, e mal, uma alteração ad hoc e pouco fundamentada à tributação do património, introduzindo uma modesta, inovadora e de dúbia eficácia financeira, progressividade na tributação do capital.

Continua ainda em vigor uma discriminação fiscal claramente positiva dos não residentes (ou dos residentes não habituais de certas profissões) em sede de IRS relativamente aos residentes nacionais. Para além do legislativo, o executivo municipal também pode e promove políticas para minorar os problemas identificados, por exemplo através da implementação de programas para requalificação ou construção de fogos para jovens de rendimentos não muito elevados.

Finalmente, o sistema judicial está a ser chamado para deliberar sobre a possibilidade de assembleias de condóminos decidirem sobre a prática de alojamento local numa das suas frações. O Tribunal da Relação de Lisboa considerou recentemente que têm essa prerrogativa, já a Relação do Porto, noutro caso, considerou que não. O assunto será eventualmente dirimido pelo Supremo.

4. O debate sobre a gentrificação, a “turistificação” e o despovoamento parcial de bairros das nossas grandes cidades já começou há uns tempos. Concordo com Helena Roseta que defende que a política fiscal não deve ser objeto de experimentação e deve ter presente a política de habitação.

E com João Seixas quando diz que “o que está em jogo é o vislumbre do que será a cidade – e não só o seu centro histórico – no futuro próximo. E de como se poderá e saberá gerir esse futuro.” Aprofundar este debate exige uma clarificação estratégica de quais os objetivos a atingir e de como certos objetivos são parcialmente conflituantes. Exige um bom diagnóstico da situação atual distinguindo quer as grandes tendências dos mercados quer os efeitos (individuais e agregados) das políticas públicas (fiscalidade e regulação).

A minha hipótese de trabalho, sujeita a refutação, é que o efeito agregado das atuais políticas públicas é o de aceleração, e não de atenuação, das tendências de mercado. Os incentivos económicos públicos justificam-se apenas até ao ponto em que as externalidades positivas são superiores às negativas. Já chegámos a esse ponto? E ainda se justificam quando estão em questão direitos fundamentais, como o direito à habitação, e mesmo o direito à cidade?

Estudos, reflexões e debates precisam-se, para fundamentar a decisão política. Uma coisa é certa. Numa economia social de mercado — uma economia mista em que participam agentes privados, públicos e do “terceiro setor” — o futuro das nossas cidades dependerá em grande parte da visão que tivermos para elas, dos princípios que defendermos, e da eficácia e coordenação das políticas públicas que adoptarmos para os alcançar.

 

Publicado originalmente no Observador em 13.12.2016