«Todas as gerações têm os seus valores. O que hoje está em desenvolvimento é um novo conjunto de valores, que muito provavelmente levará ainda uma geração a consolidar-se. (…) a juventude tem os seus valores. Provavelmente somos nós que os não compreendemos», respondeu Adriano Moreira.

Uma alternativa de esquerda à actual política económica deverá ser capaz de ter propostas concretas sobre o tipo de crescimento económico desejável, a reforma das finanças públicas e do programa de estabilidade e crescimento (PEC), a estrutura e o papel do Estado, dos seus entes autónomos, das autarquias locais e do sector empresarial.

Não é possível pensar uma alternativa credível sem a fundamentar numa análise económica coerente. É por isso que acompanho com interesse o debate interno ao PS.

Um dos principais fundamentos de uma esquerda moderna é uma visão realista da natureza humana nos processos e nas instituições públicas e políticas, que a distingue quer da visão idealista e optimista da esquerda tradicional (o homem bom com uma moral superior), quer da visão pessimista da direita neoliberal que transpõe acriticamente o paradigma do homo oeconomicus (racional e egoísta) da esfera privada para a pública.

Essa abordagem realista é evolutiva – os comportamentos adaptam-se aos contextos institucionais- e é descrita bem com o conceito de reciprocidade. Os indivíduos são generosos face a atitudes amigáveis e, ao mesmo tempo, são capazes de retaliar contra atitudes percebidas como hostis.

Apenas para se perceber o enorme alcance desta aparente pequena mudança de paradigma considere-se o problema da reforma do Estado. Uma visão utópica e romântica da natureza humana, deverá levar à conclusão que os dirigentes e outros funcionários públicos servem o interesse público por razões éticas.

É como se todos devessem seguir o imperativo categórico kantiano. Logicamente seriam desnecessários quaisquer tipo de incentivos para que o serviço público fosse bem cumprido. Contrariamente, uma visão redutora e pessimista da natureza humana leva a conclusões distintas.

Com indivíduos meramente egoístas no sector público, há essencialmente duas coisas a fazer. Reduzir ao máximo a dimensão do sector público (para o Estado mínimo) e para o que restar do funcionalismo, utilizar ao máximo incentivos externos do tipo «chicote e cenoura».

Finalmente, uma visão realista da natureza humana leva à conclusão que as soluções anteriores são indesejáveis.

Deverão existir alguns incentivos externos acompanhados de um contexto amigável de implementação, mas esses incentivos não deverão ser exagerados pois, se o forem, poderá haver um efeito de erosão das normas individuais de cumprimento do dever.

Um segundo fundamento de uma esquerda moderna é uma análise adequada do papel da informação e sua disseminação no seio e entre organizações.

Não é por acaso que um dos economistas que mais tem contribuído para uma abordagem alternativa à ortodoxia dominante e mais tem pensado o papel do Estado – Joseph Stiglitz – seja um especialista em problemas de informação.

Aliás o debate, hoje largamente ultrapassado, entre economias planificadas e de mercado era no início do século XX essencialmente um problema de informação.

Hoje, os problemas cruciais da delimitação do âmbito do sector público, da forma institucional da regulação pública, são em grande parte problemas de informação. Por exemplo, não tem sustentação na teoria económica a ideia que a privatização, leva necessariamente a uma diminuição no preço para os consumidores.

Se se tratar apenas da passagem de um monopólio público para privado, e na presença de informação assimétrica entre a autoridade reguladora e o monopólio privado, os potenciais ganhos de eficiência privada transformam-se apenas em lucros de monopólio.

Apesar de haver aspectos que estão para além da dicotomia esquerda/direita e que exigem algum consenso nacional é importante demarcar a esquerda moderna quer das direitas quer da esquerda tradicional.

A direita neo-liberal defende o alargamento dos mercados e dos direitos de propriedade privada, e o Estado mínimo.

Tem uma concepção pessimista da natureza humana e uma visão minimalista quer da democracia liberal (meramente processual) quer das liberdades individuais (definidas como ausência de coerção Estatal).

Claro que existe uma contradição insanável entre o neoliberalismo e o conservadorismo de direita, este defendendo os valores tradicionais, da família, da autoridade do Estado e da Nação. Na realidade o neoliberalismo, é das correntes mais radicais contra tudo o que seja o passado e a tradição.

A esquerda tradicional é neste momento uma força conservadora. Está na defensiva e quer conservar tal como está o Estado de bem-estar, como se isso fosse possível com as baixas taxas de crescimento do produto, a diminuição relativa da população activa e o envelhecimento da população.

Por isso é contra as propinas, é contra qualquer reforma no funcionalismo público, ou na segurança social, é contra qualquer passagem de serviços do Estado para serviços autónomos. No essencial é contra.

É igualitarista para coisas que não são iguais. No essencial a esquerda tradicional é contra, e gosta da atitude de contra-poder. A esquerda moderna deve reflectir a partir das grandes transformações do nosso tempo. Sabe que a melhor forma de defender o Estado de bem-estar é reformá-lo, de defender a autonomia individual é com a responsabilização individual.

Quer promover a justiça e a coesão social, mas sabe que existe um conflito potencial entre equidade e eficiência. Quer promover a cidadania e uma democracia deliberativa em oposição a uma democracia meramente formal.

Isto exige reforma das instituições políticas.

A tarefa da esquerda moderna não é anunciar um acordo pré-nupcial com uma esquerda tradicional mas sim transformá-la com argumentos racionais (muitos dos quais económicos) ou conquistar-lhe o espaço.

 

Publicado originalmente no Público em 06.09.2004